quarta-feira, 13 de maio de 2009

Sonhando

Certa manhã, um professor acordou chorando. Ele havia tido um sonho especial, muito diferente de qualquer outro sonho que já teve.
No sonho, esse professor começou a dar aulas para uma classe, e nessa classe havia um garoto deficiente, totalmente cego das duas vistas. Era um garoto franzino, de cabelos lisos, franja reta. Vivia de olhos fechados e, quando falava, ameaçava-os abrir. Nesses momentos, era perceptível o globo ocular se movendo pra lá e pra cá. Usava uma bengala prateada, que fazia as vezes dos olhos, detectando os obstáculos em seu caminho.
A simpatia entre ambos surgiu instantaneamente, e a cada dia que se passava um forte laço de Mestre e Discípulo ia se concretizando.
Certo dia, durante a aula, a escola foi assolada por um forte terremoto. Houve um pânico generalizado, e o professor, tentando se abrigar debaixo de uma mesa, repentinamente sentiu alguém tocando-lhe o ombro. Ao olhar para cima, viu o garoto cego, totalmente desesperado. Nesse momento, o professor o segurou pelas mãos, puxando-o para baixo e abrigando-o com seu próprio corpo. O menino, nesse momento, moveu seu pescoço, como que olhando para a face do professor. Ele sorria, aliviado, como se naquele momento todos os problemas do mundo tivessem se acabado. Ali, abrigado junto ao professor, ele sentia uma segurança incomum.
Passado o episódio, os pais desse aluno compareceram à escola e agradeceram imensamente o que o professor havia feito. O professor, meio sem jeito, explicou que não havia feito nada. Explicou ainda que, naquele momento em que o menino lhe sorriu, sentiu como se o menino o estivesse protegendo, e não o contrário.
O professor, depois do ocorrido, tornou-se um grande amigo da família do garoto, frequentando sua casa tão regularmente que foi convidado a ir à praia, em uma viagem familiar.
Estavam na beira do mar o professor, o pai do garoto e o garoto. Este usava uma bengala especial para a areia, e estava se divertindo ao tocar com a mesma algumas pedras que faziam parte do ambiente onírico. Em um dado momento, o garoto começou a se aproximar da água, sob os olhares supervisionadores do pai e do professor. Quando a água, gélida, tocou-lhe os pés, deu um saltito de susto, sorrindo logo em seguida. A sensação de liberdade ao sentir a água nos pés e a brisa marítima tocando-lhe o peito e lhe invadindo as narinas o incentivou a seguir adiante, avançando mar adentro.
O pai, já preocupado, esboçou um rompimento de marcha a fim de trazer o garoto de volta. E assim o teria feito, se não houvesse sido interceptado por um simples gesto do professor, o qual ergueu a mão direita e rompeu marcha atrás do menino, como que dizendo: “Deixe-o, eu cuido dele”.
O menino, sem saber que estava sendo seguido pelo seu querido professor, ia cada vez mais e mais fundo. Repentinamente, o garoto caiu em um buraco, vindo a afundar. Ao emergir novamente, para o espanto de todos, gritou: “PROFESSOR!”. O professor, que estava logo atrás dele, saltou em sua direção e o segurou no colo, dizendo: “Não se preocupe! Eu estarei sempre ao seu lado!”
E assim acordou o professor de seu sonho, sentindo naquela manhã um incondicional, inexplicável e absoluto amor por todos os seres humanos.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Meditando

Sentado sob sua almofada, contemplando a parede, um homem ouvia atenciosamente os pingos de chuva que tocavam a janela do quarto. Ora ou outra, identificava uma rajada de vento sacudindo as árvores da rua. Cada vez que identificava um barulho, este homem procurava mais e mais mergulhar em profunda contemplação, até conseguir confundir qualquer acontecimento exterior consigo mesmo. Esse era o objetivo: sentir-se uno com o mundo.
Severos minutos haviam se passado, pois as dores iniciais da forçada postura de lótus já não mais eram percebidas, e a mente desse homem já havia atingido um estado de completa entrega. Repentinamente, um lampejo, breve e forte, assolou seu consciente. Era como se um raio, um flash luminoso, houvesse sido lançado de seu subconsciente, atingindo em cheio sua consciência. Não era a primeira vez que ele experimentava o que os japoneses conhecem Satori, mas este Satori, em especial, havia sido diferente: ele havia enxergado toda sua vida, até o momento presente, diante de seus olhos, entendendo instantaneamente que cada segundo de sua existência foi fator preponderante para que ele estivesse, naquele momento, ali, sentado, de olhar semi cerrado, frente a uma parede lisa.
Uma sensação que mesclava paz e liberdade o invadiu por completo, expandindo-se em larga escala. Um lento e profundo suspiro encarregou-se de levar consigo o excesso de sentimento que parecia prestes a explodir-lhe o peito. Em resposta, seus lábios esboçaram um leve sorriso.
Todo o processo não durou mais do que o lento suspiro, mas, após esse Satori, o homem experimentou uma acuidade contemplativa que jamais havia percebido: uma ausência total de pensamentos o possibilitava enxergar o momento como jamais o havia feito. Tudo era tão claro, perfeita e hermeticamente encaixado, que seria perda de tempo ocupar-se em tentar usar palavras para expor tamanha magnitude.
Um minuto antes de o relógio denunciar sonoramente o fim da sessão de meditação, o homem olhou para o mesmo e, mais uma vez, sorriu de leve.

Varrendo o Tapiri

Seis e trinta e cinco da manhã. Setembro do ano 2000. O jovem contava nos dedos os dias faltantes para sua baixa. Para ele, assim como para muitos de seus camaradas, este seria o dia em que receberiam de volta a liberdade. Seria, em sua mente, um dia festivo, pois não precisaria mais passar o dia limpando o quartel, tampouco ter que respeitar as pessoas pelo título que possuem (esse mesmo jovem estranhou quando ouviu algumas frases comuns do cotidiano sendo colocadas com o sentido inverso para uso militar, como por exemplo: “Tens que me respeitar pelo posto que tenho, e não pela pessoa que sou”, ou “Aqui todo mundo é culpado até que se prove o contrário”, dentre outras), não precisaria mais varrer a área externa do quartel, que todo santo dia amanhecia coberta de pequeninas folhas que caíam das árvores arredores. Mal sabia ele que dessa época sentiria saudades, e que os até então malfeitores seriam posteriormente agradecidos e tidos como “formadores de caráter” por ele próprio.
Depois de cumprir o plantão de sentinela das duas às quatro da manhã, o pior horário que existe, tanto por ter que interromper o sono no meio da madrugada quanto por ser neste exato período de tempo que os fenômenos metafísicos do quartel costumavam acontecer, o jovem de dezenove anos de idade varria impacientemente o tapiri – uma área externa, coberta, mas sem paredes, de uns oitenta metros quadrados. Cansado e nervoso, o jovem começou a respirar profundamente, e percebeu que varrer poderia ser uma terapia. Imaginou-se varrendo sem a obrigação de varrer, e chegou à conclusão de que este seria um excelente exercício para manter-se conectado com o AGORA. Por um breve tempo, o jovem sentiu um grande prazer em varrer, o qual logo se esvaiu quando se lembrou que estava dentro do quartel, varrendo as malditas folhinhas que intempestivamente insistiam em cair o ano todo. Tomado novamente pela fúria contida, o jovem rapaz balbuciou palavras inaudíveis, mas que carregavam em si o significado de que “era impossível fazer alguma coisa prazerosa naquele lugar”.

Nove Anos Mais Tarde - continuação do "Varrendo o Tapiri"

Nove e meia da manhã. Março de 2009. O ex-soldado número vinte e quatro do contingente de 2000, já homem, varria com certa pressa a sala da casa em que morava, em uma pequena e pacata cidade do sul da Alemanha, pois, após a faxina, ainda tinha que se entregar a severas horas de estudo.
Ao mesmo tempo que varria, o homem se perguntava como é possível uma casa juntar tanta sujeira em tão pouco tempo, sendo que as portas e janelas permaneciam praticamente o dia todo fechadas, devido ao rigoroso inverno alemão, e a cultura local primava pelo despir dos sapatos ao se adentrar em qualquer casa. Lembrou-se então de ter lido, não sabia onde, que grande parte da sujeira da casa deriva do próprio ser humano, que renova sua pele em tempo mínimo. Isso o fez pensar nas semelhanças que temos com as cobras, o que acabou levando-o a lembrar das teorias sobre reptilianos, e sua mente perdeu alguns segundos formulando idéias a respeito de um criacionismo oculto pelo criacionismo convencional. Tais idéias deixam de beirar o absurdo quando se analisa a dita “história oculta” em paralelo com um estudo analítico do antigo testamento da bíblia. Essas idéias, certa feita, haviam-no convencido de que eram a ponte faltante entre o criacionismo e o evolucionismo.
Voltando de sua abstração, o homem viu-se novamente apressado em terminar logo a faxina da casa, pois estava preocupado com os estudos. Ao lembrar-se da urgência em terminar a limpeza e da carga de estudos que o esperava, acabou entregando-se à ira contida e, respirando profundamente, lembrou-se de quando varria o tapiri. Ele se recordava nitidamente da idéia que lhe ilustrou quão boa seria a experiência de varrer sem ser obrigado a tal. O homem, então, mapeou rapidamente sua memória em busca de uma única vez que houvesse feito uma faxina prazerosa no decorrer desses nove anos passados. Para seu espanto, não se recordou de ter varrido como havia proposto uma vez sequer.
O que o impedia? Por que não poderia fazê-lo naquele instante? Foi só então que ele percebeu que sempre teria o que fazer, mas que isso não poderia de forma alguma tolher a magia do presente. Foi nesse momento que a sensação de destino lhe invadiu a alma, apresentando-lhe a clara percepção do momento presente.
De olhos fechados, sentindo uma imensidão dentro de si, suspirou lentamente, deixando brotar em seus lábios um leve sorriso, delator da paz que estava sentindo. Abriu os olhos e, com uma vacuidade mental jamais antes percebida, voltou a varrer sua casa.

Apanhando na Escola

No mês de fevereiro de algum dos primeiros anos da década de noventa, um moleque de dez anos de idade, recém-chegado à cidade, inicia seu primeiro ano ginasial em uma escola pública local.
Este rapazote, de origem abastada, foi motivo de chacota já no primeiro dia de aula: o único a comparecer com uma mochila de marca nas costas. Tardiamente descobriu que, como tribos distintas, cada cidade tem seus costumes e, na escola, cada faixa etária tem suas atitudes e costumes peculiares. Como antes disso o pobre coitado só havia frequentado uma única escola em sua vida, seria impossível para ele saber que, nessa cidade, o marco da puberdade era representado pelo material escolar levado na mão.
Desde o início taxado como bobinho e frágil, tornou-se o alvo das provocações juvenis. É estranho o comportamento do bicho homem, que desde cedo demonstra uma natural necessidade de auto-afirmação. Vencer faz um bem imenso ao ego, e as crianças ainda pequenas já sabem disso. As chacotas, as provocações e os desafios são meras representações dessa necessidade de estar por cima, e só se acentuam com o passar do tempo. Se o alvo é frágil e indefeso, melhor ainda, pois a vitória é certa.
Depois de aturar diversas provocações, o rapazote respondeu uma delas à altura. Paripassu foi jurado: “Te arrebento na saída!”.
Angustiado, pálido, trêmulo, dirigiu-se ao portão da escola, ladeado por uma multidão de espectadores. Na boca não encontrava um pingo de saliva sequer, e cada gole a seco raspava sua garganta taciturna.
A briga não tardou em começar e, para a surpresa dos presentes, o garoto mimado e frágil começou a levar vantagem sobre o outro. Porém, como que para defender a honra de um clã, surgiu um terceiro, que segurou as mãos do rapazote para trás, momento em que o outro moleque começou a espancá-lo. Socos no rosto, no abdômen, chutes nas pernas, nas canelas, nos genitais.
A covardia havia sido tacitamente justificada pelos valores histórico-sociais arraigados ao caso: um maricas que veio de escola particular não poderia ser capaz de bater em um moleque que se criou praticamente na rua, e um moleque criado na rua e estudante de escola do estado não poderia nunca superar as notas daquele.
Depois da sessão de espancamento, o moleque ficou sentado no chão, chorando, enquanto a multidão se esvaía paulatinamente. Pôde presenciar todo tipo de face: gente cochichando e rindo, gente séria, outros querendo se aproveitar de sua situação e “deixar o seu”. Nesse dia, esse menino conheceu o desejo de vingança, um sentimento amargo e quente, que começa no peito e se irradia por todos os membros do corpo.
No dia seguinte, a mãe do menino transferiu-o para uma outra escola estadual.

Batendo na Escola

Na nova escola, o rapazote já chegou de material na mão. Carregava também consigo as gírias locais, aprendidas na escola anterior, além de amargas experiências de convívio. Por esses motivos, não foi alvo de provocações.
Ele já estava cursando o terceiro ano ginasial quando, depois de uma tola discussão com um de seus companheiros de classe (o menor deles), partiu para cima do mesmo, desferindo dois socos no peito e um chute na coxa. O rapazinho recebeu os golpes, caindo sentado em uma das cadeiras da classe. Nada fez: não reagiu, não xingou, não chorou. Depois de alguns instantes, levantou-se e saiu solitariamente da sala de aula.
Foi instantâneo o arrependimento do agressor. O que tornava pior a situação foi o estado catatônico do rapazinho. Pensamentos alterados perambulavam pela cabeça daquele que já tinha experimentado o sabor de apanhar: “Se ao menos ele tivesse me xingado!”, “Ele é um idiota, ele mereceu!”. A verdade é que nenhuma desculpa cabia como justificativa para uma atitude tão brutal e sem sentido. Nesse dia, esse rapaz experimentou o arrependimento, um sentimento amargo e gelado, que começa no peito e se irradia por todos os membros do corpo.